Racismo estrutural: onde fica o Direito?

Ilustração Alma Preta
Ilustração Alma Preta

Texto / Vera LĂșcia Santana AraĂșjo*

“Uma história de vozes torturadas, línguas rompidas, idiomas impostos,

discursos impedidos e dos muitos lugares que nĂŁo podĂ­amos entrar,

tampouco permanecer para falar com nossas vozes”.

A provocação trazida Ă© da Introdução de Grada Kilomba, psicanalista, escritora, artista interdisciplinar portuguesa, em sua obra “MEMÓRIAS DA PLANTAÇÃO – episĂłdios de racismo cotidiano”, e, em curtĂ­ssima sĂ­ntese, podemos asseverar que bem expressa a sĂłlida base do racismo estrutural, processo sistĂȘmico, construĂ­do e retroalimentado para conferir privilĂ©gios a certos e determinados estratos das gentes, promovendo artificial divisĂŁo humana.

É histĂłrica a construção de hierarquias sociais atravĂ©s da instituição de critĂ©rios que atribuem distintas ocupaçÔes de lugares, espaços de falas e silĂȘncios, sendo certo que os referenciais de raça e de gĂȘnero constituem pilares de desigualdades que perpassam sĂ©culos, povos, e aqui destacaremos a identidade racial para iniciar debate que se pretende profundo, fraterno e construtivo sobre o racismo estrutural no Brasil, e suas interfaces notadamente com o mundo jurĂ­dico.

É fato inconteste que a escravização negra, raiz da formação brasileira, dĂĄ o mote para a persistente desigualdade racial que orienta e conduz o conjunto das relaçÔes econĂŽmicas, sociais, culturais e institucionais do paĂ­s. O sistema jurĂ­dico tem papel fundamental nessa engrenagem por incidir de forma determinante nas modelagens, desde a estrutura escravista atĂ© os dias de hoje, de modo que o Direito figura tambĂ©m como instrumento de preservação das segmentaçÔes que afetam brutalmente o maior contingente populacional negro fora das terras ancestrais do Continente Africano.

Ante as bases escravagistas que tiveram a proteção legal atĂ© maio de 1888, a reorganização formal do trabalho no Brasil deveria ter contado com uma nova ordem jurĂ­dica efetiva, capaz de erguer as pilastras sobre as quais seriam constituĂ­das relaçÔes econĂŽmicas a partir do trabalho “livre”, eufemismo para a exploração capitalista da força de trabalho e, para tanto, o Brasil teria que ter promovido um amplo leque de polĂ­ticas de reparação econĂŽmica, de promoção da educação, dentre todas as medidas destinadas a prover a digna sustentação das famĂ­lias negras, em especial para acolhimento na rede pĂșblica de educação, que seguiu privativa de brancos e brancas.

Em um corte cronolĂłgico radical, chegamos a 1988, ano que marca a consolidação do rompimento de uma cruel ditadura militar, regime que colocou na clandestinidade as vĂĄrias entidades e articulaçÔes negras, cujos eixos de mobilização expunham o racismo como cerne das desigualdades estruturais do Brasil. No perĂ­odo, o artista, intelectual ativista Abdias do Nascimento era pessoa representativa das insurgĂȘncias negras da Ă©poca, e Carlos Marighella o nome mais expressivo do campo de resistĂȘncia.

A ordem constitucional do Estado DemocrĂĄtico de Direito erigido com a Carta PolĂ­tica de 88 trouxe acenos para nossa gente negra, diante da constitucionalização do direito Ă  ancestralidade, com o tombamento cultural de documentos e sĂ­tios histĂłricos, e mais, o reconhecimento das terras quilombolas como territĂłrio coletivo das comunidades detentoras da posse e histĂłria negra libertĂĄria. Do mesmo modo, a criminalização do preconceito racial manifesto em racismo estĂĄ entre os sinais de que a cidadania nacional poderia ser extensiva, para todas e todos. E esta seria a função maior do Estado como gestor democrĂĄtico da RepĂșblica Federativa do Brasil.

Ledo engano! O decantado princĂ­pio republicano segue sendo termo retĂłrico das elites brancas em zigue-zague direita-esquerda. A RepĂșblica brasileira Ă© impenetrĂĄvel e as histĂłrias individuais, de exceçÔes, reafirmam a consistĂȘncia do racismo estrutural que cerceia a população negra do acesso Ă  cidadania e, no extremo, promove o genocĂ­dio reconhecido pelo Estado brasileiro, por meio de ComissĂ”es Parlamentares de InquĂ©rito (CPIs) do Senado Federal e da CĂąmara dos Deputados. Fica claro que o Estado inconstitucional nĂŁo Ă© acusação de forças perifĂ©ricas, mas conclusĂŁo de acuradas investigaçÔes promovidas pelo Poder Legislativo. Os relatĂłrios das CPIs expĂ”em sem disfarces a necropolĂ­tica estatal, que angaria ampla legitimação social fomentada pelas grandes mĂ­dias.

Na esfera do Poder JudiciĂĄrio importa destacar que o fazer cotidiano da magistratura nacional opera rigorosamente em desacordo com as letras da Constituição Federal, por meio de julgamentos seletivos em face das identidades raciais para absolver ou condenar, a menor ou a maior. O racismo institucional Ă©, assim, elevado Ă  condição de braço forte na mantença da espessa estrutura racialmente desigual que permite ao paĂ­s praticar polĂ­ticas vexatĂłrias de concentração de rendas e de violĂȘncia estatal. É esse cotidiano que segrega, oprime, humilha, vilipendia o homem negro e violenta a mulher negra.

Sim, o distanciamento entre os preceitos consagrados na CF de 1988, em convençÔes, em tratados e outros ajustes internacionais abrigados pelo ordenamento jurĂ­dico brasileiro e a efetividade da atuação cotidiana do Sistema Nacional de Justiça, ancorado no aparato do Sistema de Segurança PĂșblica, desnuda especialmente no Ăąmbito das polĂ­ticas de segurança e execução do direito penal o olhar Ășnico e dirigido para reafirmar modelos segmentados, excludentes e punitivos, com indisfarçado recorte de tom colonialista, de negação da existĂȘncia individual e coletiva dos corpos negros desalojados da intrĂ­nseca humanidade que o racismo ofende, agride!

Aqui, por honestidade histĂłrica, deve ser pontuado que o Supremo Tribunal Federal se notabilizou em julgados significativos, relevantes, em especial no tocante Ă  declarada constitucionalidade da polĂ­tica de açÔes afirmativas de cotas raciais para ingresso em universidades e concursos pĂșblicos do paĂ­s, como instrumentos indutores de promoção da inclusĂŁo racial na busca da igualdade; na garantia de ritos religiosos dos povos de santo, tema da maior importĂąncia para o combate Ă  intolerĂąncia religiosa que chega a matar praticantes de religiĂ”es de matriz africana.

Noutra ponta de suporte Ă  estratificação racial, as relaçÔes de trabalho no Brasil ainda ostentam as marcas das mĂșltiplas torturas das senzalas e dos pelourinhos, quer pela indecente desigualdade da remuneração da força de trabalho, quer pela pura e simples barreira imposta ao ingresso de negros e negras em certos nichos. Nesse ponto, a exemplificação se volta Ă  advocacia privada nacional.

O exercĂ­cio da advocacia Ă© atividade privativa de profissionais regularmente inscritos na Ordem dos Advogados do Brasil. Por força de dispositivo constitucional, o advogado e a advogada sĂŁo indispensĂĄveis Ă  administração da justiça. No entanto, a ausĂȘncia negra na prĂĄtica da advocacia e na direção da entidade representativa da categoria dizem muito sobre a institucionalidade branca que rejeita a presença negra, como revelou mapeamento realizado pelo Ceert (Centro de Estudos das RelaçÔes de Trabalho e Desigualdades) em parceria com a Aliança JurĂ­dica pela Equidade Racial, formada por escritĂłrios com apoio do prĂłprio Ceert e da FGV (Fundação GetĂșlio Vargas), demonstrando que a participação de negros e negras nos grandes escritĂłrios de SĂŁo Paulo nĂŁo chega sequer a 1%. A OAB Nacional, por sua vez, sequer identifica racialmente seus inscritos e inscritas, dificultando sobremaneira a formulação de medidas reparadoras e de inclusĂŁo.

As consideraçÔes aqui tecidas buscam estreitar as trocas com as forças negras da sociedade brasileira e abrir interlocuçÔes com organizaçÔes pan-africanas. Esses podem ser passos firmes e decisivos sobre trilhas nunca dantes percorridas por setores sociais hegemĂŽnicos, brancos, inovando em experiĂȘncias aptas a desmantelar muralhas inviabilizadoras da coexistĂȘncia humana.

Debruçar sobre as disfunçÔes operacionais do entrelaçamento do direito com a funcionalidade do racismo estrutural é tarefa inadiåvel das forças democråticas comprometidas com a redemocratização do Brasil, que em perspectiva não pode mais se servir do racismo para robustecer as iniquidades incompatíveis com marcos civilizatórios que até o capitalismo comporta.

*Vera LĂșcia Santana AraĂșjo, advogada, integrante fundadora da ABJD (Associação Brasileira de Juristas pela Democracia), e ativista da Frente de Mulheres Negras do DF e Entorno