Relançada, biografia dos Titãs mostra que história da banda é mitológica
No momento em que começam os ensaios para “Todos ao mesmo tempo agora”, a leitura da nova edição de “A vida até parece uma festa” (Globo Livros) se torna ainda mais necessária. Em 2002, quando Hérica Marmo e Luiz André Alzer lançaram a biografia original, os Titãs eram uma banda de futuro incerto, destroçada pelas perdas do guitarrista Marcelo Fromer (num acidente de trânsito, em 2001) e do baixista Nando Reis (que em 2002 deixava a banda, de forma traumática, para dedicar-se àquela que viria a ser a mais bem-sucedida carreira solo de um titã). Hoje, Nando se reúne aos outros seis integrantes vivos do mítico octeto para a turnê que começa em 27 de abril no Rio — aquela em que muitos poderão ver pela primeira vez, com a mais completa formação possível, o grupo mais criativo do rock brasileiro dos anos 1980.
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Explicar a revolução promovida pelos Titãs é uma tarefa que o livro executa bem, a começar pela construção dos perfis daqueles jovens paulistanos, colhidos pela efervescência cultural do fim dos anos 1970, ainda sob grande pressão da ditadura. Uma turma que não fazia distinção entre as manifestações artísticas — música, artes plásticas, TV, cinema, moda. E que, mesmo dentro da música, era absolutamente despida de preconceitos — samba, rock, reggae, brega, funk, valia tudo em seu caldeirão pós-tropicalista antropofágico. Depois das naturais depurações, conta o livro, acabaram sobrando oito cabeças, unidas num mesmo desejo de se fazer notar pelo maior número de pessoas que conseguissem.
Os Titãs. Como banda de rock — uma das várias que surgiram e se popularizaram na época —, eles eram estranhos demais: por serem oito, por não se aterem a um estilo só, por não emularem um artista estrangeiro específico, por não terem um líder... e o que era estranheza, numa daquelas reviravoltas fantásticas que a gente sempre aprecia na ficção, acabou virando a sua força: quem iria imaginar que os meninos de roupas e danças excêntricas, bibelôs dos programas de auditório com o inofensivo ska “Sonífera ilha”, em poucos anos seriam aqueles a incendiar plateias (e provocar a depredação do Teatro Carlos Gomes, no Rio) com o repertório punk do LP “Cabeça dinossauro”?
Altos e baixos
Muitas passagens de “A vida até parece uma festa” poderiam render livros inteiros. Por exemplo: o de como aqueles garotos, transformados de puros sonhadores em músicos profissionais, conseguiram conjugar suas visões em “Õ blésq blom” (1989), um disco de inacreditável perfeição técnica (conseguida na parceria com o produtor Liminha), cuja união de música de raiz brasileira e pop eletrônico de ponta prefaciou o Chico Science & Nação Zumbi de “Da lama ao caos” e toda a música pop nacional dos anos 1990. Ou então: o “Acústico MTV” (1997), com o qual os Titãs, depois de incursões na música pesada, saíram da lama para virar um dos maiores vendedores de disco do Brasil, só com a força das suas canções (e da variedade de seus ótimos intérpretes).
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Com atenção tanto ao contexto histórico e aos detalhes das gravações de cada LP quanto às passagens envolvendo amores, dinheiro, drogas, dores da existência e mau comportamento em geral (sem as quais não se escreve uma história sobre o rock’n’roll), o livro avança com desembaraço e sabor pelos altos e baixos dos Titãs — e não poupa detalhes acerca das saídas de Arnaldo Antunes (1992), Nando Reis, Charles Gavin (2010) e Paulo Milkos (2016). O material da nova edição é feliz ao relatar os descaminhos daqueles músicos (quarentões, depois cinquentões, hoje todos acima dos 60 anos) num mundo em que a indústria musical se dissolvia antes de se reinventar, e os artistas do rock dos anos 1980 se viam como engrenagens de uma indústria do revival.
Nunca absolutamente tediosos (ou insuficientemente humanos) em sua trajetória, os Titãs têm em “A vida até parece uma festa” um bom guia para entender a dimensão da celebração que está por vir com a turnê “Todos ao mesmo tempo agora”. Com o distanciamento temporal necessário, e todos os cuidados na elaboração da narrativa do livro, a história da banda se configura, de fato, mitológica.
‘A vida até parece uma festa’. Autores: Hérica Marmo e Luiz André Alzer. Editora: Globo Livros. Páginas: 456. Preço: R$ 69,90. Cotação: bom.