Saiba o que é o 'love bombing': romantismo exacerbado esconde comportamento nocivo de quem o pratica
Ouvir do crush que você é a mulher perfeita e nunca existiu nenhuma outra igual na vida dele. Receber flores, presentes e declarações dignas de filmes românticos, já nos primeiros encontros. Essa “explosão de amor” é um oásis em meio ao deserto das relações superficiais do mundo moderno. Mas também denuncia um comportamento bastante tóxico a longo prazo: o “love bombing”.
Um dos exemplos públicos da prática é a história do israelense Shimon Yehuda Hayut, mais conhecido como Simon Leviev, protagonista do documentário “O golpista do Tinder”. Para enganar e tirar dinheiro de mulheres ao redor do globo, ele fazia juras de amor, presenteando-as com viagens, joias e prometendo compromisso sério.
“Isso parte, geralmente, de quem tem personalidade narcisista, manipulando intencionalmente o outro e reforçando relações de abuso de poder. Geralmente, é mais comum nos homens. Eles têm a necessidade de serem admirados, com baixa tolerância a frustração e críticas”, explica a psiquiatra Tânia Ferraz Alves, do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da USP. De forma geral, ela diz, as demonstrações exageradas quase nunca são reais. “O afeto na relação é construído aos poucos e isso, nesses casos, não existe, deixando a sensação de vazio. Quando a pessoa para de ter toda essa atenção e o abusador parte para o próximo alvo, ela se culpa, sentindo-se inferior.”
Para a escritora e educadora sexual Laís Conter, de 34 anos, ter cruzado o caminho de um love bomber, há quase quatro anos, deixou um rastro de destruição emocional. “Ele falava coisas que ninguém tinha me dito. No terceiro dia juntos, já estava apaixonado e me elogiava. Eu era perfeita, a mulher dos sonhos”, conta Laís. Desconfiada, esperava sempre que ele desse o primeiro passo. Poucas semanas depois, quando decidiu mergulhar de cabeça na relação, levou um “caldo”. “Ele recuou. Disse que estava confuso por causa da ex. Fiquei desolada, chorei muito, fui do céu ao inferno. Até hoje, mesmo sabendo quão problemática era a forma como ele me tratava, sinto falta disso”, lamenta.
Laís acredita ter sido o alvo perfeito do rapaz pela ausência paterna e pela baixa autoestima na infância e na adolescência. “Ele era um príncipe encantado, eu me sentia lisonjeada e parece que, depois dele, ninguém mais foi o suficiente. É um assunto difícil, mas agora percebo que foi 100% abusivo”, finaliza ela, hoje solteira.
Viver em uma sociedade baseada no amor romântico e também no ideal dos relacionamento dos contos de fadas, com a “ajuda” das redes sociais, contribui para que algumas mulheres tornem-se alvos fáceis e não percebam os sinais, muitas vezes, sutis. “As redes vendem a perfeição, e isso é ainda pior para quem está fragilizada emocionalmente. Quem não está acostumada com demonstrações de amor, vai entrando numa teia”, diz Marcely Quirino, coordenadora do serviço de psicologia do Complexo Hospitalar de Niterói. “Aos poucos, você percebe que não há empatia, parceria ou cumplicidade. Depois do love bombing, há a desvalorização da vítima e um comportamento abusivo.”
Foi o que aconteceu com a professora de educação física Ruana Cardoso, de 27 anos. Após uma relação rápida e intensa, de dois meses, com um professor, sua autoestima ficou em frangalhos. Os dois, que se conheceram no ensino médio, reencontraram-se no fim do ano passado, e logo ela se encantou com tantos elogios. “No primeiro encontro, ele me pediu em namoro. Tinha pressa em conhecer meus pais e amigos, e dizia o quanto era um homem legal, e eu, uma mulher muito inteligente”, conta. Não durou muito até que Ruana questionasse seu comportamento.
“Foi quando ele mostrou total desinteresse por mim e passou a criticar meu corpo, o que eu comia, além de dizer que no casamento, quem mandava era o homem. Fiquei arrasada”. De acordo com a psicóloga Marcely, as consequências na vida de quem sofre com o love bombing podem ser ainda mais catastróficas. “O exemplo do documentário ‘O golpista do Tinder’ é muito real. A mulher pode se envolver com um estelionatário. Há quem entregue todos os recursos financeiros, porque realmente acredita naquele amor.”
A pedagoga Sara Souza, de 36 anos, não teve perdas financeiras, mas esteve em um casamento abusivo, com ciclos de demonstrações de amor infinito, por 10 anos. Quando conheceu o ex-marido, ele morava na Austrália, e ela abriu mão de tudo no Brasil para segui-lo. “Tínhamos uma conexão muito forte na cama e ele me endeusava. Anos depois, engravidei. Ele me culpou por isso e raramente me ajudava com nossa filha”, relembra. Todas as vezes em que Sara tentava se separar, o então companheiro voltava com o romantismo exacerbado.
“Ele até disse para nos casarmos na chácara da minha mãe. Mexeu muito comigo, porque era meu sonho.” Fragilizada, começou a fazer terapia, e, enfim, tomou coragem para deixá-lo. “Fiquei traumatizada, mas hoje tenho um relacionamento mais leve, com respeito e carinho. Ressignifiquei muita coisa na minha vida e hoje estou aprendendo a amar de verdade.” Sem fogo de palha.