Secura e o gelo esmagam pequenos produtores no centro do Brasil
“A gente não consegue nem dormir mais à noite pensando em ter de vender as vacas que criamos há tanto tempo, cuidando, e que dá nosso sustento, mas não tem mais condições de mantê-las”, lamenta o pequeno produtor Francisco Dantes.
“Cada animal que a gente vende é simplesmente para poder dar de comer para as outras”, completa ele, enquanto empacota a pequena produção de requeijão artesanal que será vendida em feiras de Uberlândia, no triângulo mineiro.
Dantes conta que o pasto que deveria ter durado até pelo menos agosto em maio já havia secado e ralo demais para a alimentação dos 15 animais que possuía, entre vacas e bezerros. “Já perdi a conta de quantos bezerros eu perdi com essa falta de comida, e vacas já foram duas; uma delas sacrificamos porque ela já nem conseguia levantar”, conta.
As demais estão à venda, em uma espécie de liquidação rural. “O gado está chupando pedra, não restou nada de pasto, então a gente vende porque não tem mais o que fazer”, comenta.
Sem chuva desde meados de abril, e sem previsão de alguma significativa até outubro, o triângulo mineiro, sul de Goiás e noroeste de São Paulo compõem o núcleo das secas que ameaça o fornecimento de energia elétrica no país no segundo semestre.
Lá se concentram oito dos dez reservatórios sob maior risco de colapso, incluindo as usinas hidrelétricas de Itumbiara e São Simão, segunda e terceira maiores da bacia do Rio Paraná.
Desde 1º de junho a região, que abrange os estados de Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso do Sul, São Paulo e Paraná, está sob emergência hídrica, decretada pela ANA (Agência Nacional de Águas e Saneamento). A medida permite a limitação de volumes de captação de água nos rios da bacia em caso de necessidade.
Apesar do alerta para os próximos meses, para pequenos e médios produtores rurais o que ainda é uma ameaça no meio urbano já vem se tornando uma tragédia há pelo menos dois meses.
“Parecia que aqui em cima havia uma bolha; as poucas nuvens que chegavam desviavam; agora o resultado é que áreas de brejo e mina d'água, onde antes eu levava o gado para beber água, agora pode arar e até plantar se quiser”, comenta o morador de Prata Joaquim Lopes, em seu sítio no centro do triângulo mineiro.
A cidade é a maior produtora de gado de Minas Gerais, perdendo somente para os gigantes da produção, localizados em áreas de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul.
A água, antes de fácil acesso, agora precisa ser extraída com a ajuda de bombas hidráulicas. Como pequenos produtores, Dantes e Lopes possuem outorga de extração de água de rios e córregos como “volume insignificante”.
No entanto a crise hídrica, que já é uma realidade nos meses mais secos na região de cerrado intensa produção agropecuária, se acirrou na pior estiagem dos últimos 91 anos, revelando a sobre-exploração de águas guardadas no subsolo.
Medo do futuro é a sensação mais relatada: “Nos meses de seca, nós, criadores de gado, sempre pagávamos para trabalhar, gastando com ração, etc. Mas antigamente eram três meses, e esse período vem aumentando cada vez mais”, reclama Ivo Zanatta, um precursor da pecuária na região.
“Daqui a pouco não vai ter como manter a atividade; esse ano já vimos fontes, ribeirão inteiros secarem, é assustador passar sete meses vendo o pasto seco e os animais magros”, resume.
'Geada para gente significa a morte'
A menos de 6 km do lago da usina hidrelétrica Marimbondo - que possui capacidade para abastecer uma cidade como Belo Horizonte - Rosa Marta de Sousa vem queimando pneus em meio a suas plantações de legumes para impedir que morram queimadas pelo frio extremo e inesperado que chegou até mesmo à Bahia, onde temperaturas de 13ºC assustaram moradores do sertão.
“A geada para nós significa morte, porque ela queima tudo, piorando a situação da estiagem, que acaba por secar e matar o que sobrar de verde”, explica a moradora de um assentamento sem terra vizinha de fazendas de plantio de cana-de-açúcar. “Podemos esperar um ano muito difícil para todos os pequenos e médio produtores, porque prejuízo muitos já tiveram, e foi grande”.
As cidades próximas à divisa com São Paulo concentram grande parte dos 67% da cana produzida em toda Minas Gerais. Produção que chama atenção pelo verde em meio aos campos amarelados.
Além dos pastos onipresentes, muitos deles são plantações da chamada safrinha de milho - normalmente de menor volume e feita entre os meses de janeiro a abril, quase sempre depois da soja precoce.
“Os grandes produtores em geral possuem seguro contra imprevistos, mas os médios e pequenos que venderam o milho antecipado para grandes empresas como Bunge e Cargill e não colheram nada, agora estão quebrados; eles venderam a R$ 40 a saca e agora precisam comprar de quem conseguiu colher por R$ 100; tenho visto muita gente desesperada com essa situação”, conta o agrônomo e professora da UFU (Universidade Federal de Uberlândia) Paulo Rabelo.
Em São Simão/GO, lar de uma das maiores usinas hidrelétricas do país e pólo de escoamento de grãos, com terminais rodoviário, ferroviário e hidroviário, a chegada de caminhões reduziu em até dois terços, segundo estimativas de trabalhadores do setor.
“Perdemos até metade dos fretes, porque a hidrovia também está baixa, impedindo o carregamento total das balsas que descem até o rio Paraná”, conta o encarregado administrativo Sebastião Medeiros.
Não há um levantamento histórico do nível do Rio Paraná, mas como comparativo, o rio Paraguai, um dos principais afluentes, está com o menor nível em 50 anos, aponta levantamento do Yahoo! Notícias com dados da Marinha do Brasil na estação de Ladário.
Segundo estimativa do Sindicato Rural de Uberaba, os produtores de milho de Uberaba podem ter sofrido perda de até 70% da safrinha. A produção deste ano já havia sido afetada pela falta de chuva e, com o frio extremo, a coisa ficou ainda pior.
Hoje o Brasil já não tem o milho que o consome. Além desses fatores, o Brasil pode ter dificuldades de importar o produto. A Argentina enfrenta problemas fiscais que barram a exportação e os Estados Unidos estão sofrendo com uma forte seca.
Usado sobretudo na alimentação animal, o milho teve uma alta de até 200% nos últimos 12 meses. As plantações foram prejudicadas por ataques da cigarrinha – uma praga comum dessa cultura –, depois pela seca e, agora, por causa das geadas.
Com isso, economistas já preveem um efeito cascata na economia brasileira, que pode chegar nos próximos meses aos supermercados da população urbana.
Com bandeira tarifária da energia em sua cota máxima devido `a baixa dos reservatórios, a ameaça de racionamento elétrico devido às secas e a escassez e inflação dos alimentos, a melhora na situação da pandemia no Brasil em 2021 não aparece no horizonte como um processo suave e otimista.