Sobre coisas que acontecem

Quando abri os olhos pela manhĂŁ, nĂŁo podia imaginar que seria o dia que mudaria a minha vida.

Que seria o dia que conheceria o homem que me faria cometer um crime. O dia que eu me enxergaria no espelho pela Ășltima vez. O dia que descobriria que estava grĂĄvida. O dia que encontraria um envelope lacrado, com uma carta remetida a mim 20 anos antes.

(Que dia foi esse? Quem estĂĄ falando?)

É apenas um exercício de criação. Iniciei a crînica com uma frase fictícia e demonstrei os desdobramentos que ela poderia ter. Uma vez escolhido o caminho a seguir, uma história começa a ser contada, que pode ser longa ou curta, verdadeira ou fantasiosa. Bem-vindo ao mundo encantado da escrita.

ConvĂ©m que a primeira frase seja cintilante. A partir dela, o leitor serĂĄ fisgado ou nĂŁo. Exemplo clĂĄssico: “Todas as famĂ­lias felizes se parecem; cada famĂ­lia infeliz Ă© infeliz Ă  sua maneira”, inĂ­cio do romance Anna Karenina, de TolstĂłi. Arrebatador. Uma vez aberta a janela do pensamento, a mĂĄgica acontece: o leitor Ă© puxado para um local em que nunca esteve, Ă© deslocado para um universo que poderĂĄ atĂ© ser hostil, mas certamente fascinante, pois novo. Talvez nĂŁo se identifique com nada, mas serĂĄ desafiado a enfrentar sua repulsa ou entusiasmo. NĂŁo estarĂĄ mais em estado neutro. A neutralidade Ă© um desperdĂ­cio de vida, uma sonolĂȘncia contĂ­nua.

A crĂŽnica tem o mesmo dever: o de jogar uma isca para o leitor e atraĂ­-lo para o texto. GĂȘnero hĂ­brido (literĂĄrio/jornalĂ­stico), encontrou no Brasil a sua pĂĄtria. Somos a terra de Rubem Braga e Antonio Maria, para citar apenas dois gĂȘnios entre tantos que fizeram da leitura de jornal um hĂĄbito nĂŁo sĂł informativo, mas prazeroso e provocador. Se eu fosse citar todos os colegas que admiro, teria que me estender por meia dĂșzia de pĂĄginas, mas sĂł tenho essa.

A crĂŽnica Ă© um gĂȘnero livre por excelĂȘncia. Pode ser nostĂĄlgica, confessional, lunĂĄtica, poĂ©tica. Pode dar dicas, polemizar, elogiar, criticar. Pode ser partidĂĄria ou sentimental, divertida ou perturbadora, Ă  toa ou filosofal — Ă© caleidoscĂłpica, tal qual nosso cotidiano. Ao abrirmos os olhos pela manhĂŁ, nem imaginamos que uma miudeza qualquer poderĂĄ nos salvar da mesmice, nos oferecer um outro olhar, mas assim Ă©. Todos nĂłs vivemos, por escrito ou nĂŁo, uma crĂŽnica diĂĄria. Hoje, antes de adormecer, vocĂȘ jĂĄ estarĂĄ um pouco transformado.

* ApĂȘndice comercial: nesta segunda-feira, começa a prĂ©-venda do Master Class que gravei sobre a arte de escrever crĂŽnicas. SĂŁo 30 mĂłdulos on-line onde conto minha longa experiĂȘncia nesta atividade: os macetes, as alternativas, os obstĂĄculos. Fica o convite para a live de lançamento, dia 25, Ă s 20 horas, no perfil @_xpertise do Instagram.

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