Tragédia em SP: 'Ouvi pedidos de socorro, aos gritos, mas a lama me impediu de sair de casa', lamenta voluntário

“Mar de lama” é a expressão usada pelos sobreviventes dos deslizamentos em Vila Sahy para descrever o desastre que, na cidade de São Sebastião, no Litoral Note de São Paulo, causou a morte de pelo menos 46 pessoas desde as chuvas fortes das primeiras horas de domingo. O bairro é o que concentra o maior número das vítimas fatais, que, em toda região, é de 46. O vigilante Guilherme Santos, de 38 anos, conta que ouviu um estrondo às 3h50 de domingo e foi à janela:

— Aí não vi mais as casas dos meus vizinhos, e sim um mar de lama. Meus vizinhos não existem mais e não sei se vou conseguir voltar para casa — afirma Santos, em meio aos escombros da Vila Sahy.

Às 14h desta terça-feira, Guilherme era uma das dezenas de moradores que ajudavam o Corpo de Bombeiros e a Defesa Civil na procura por sobreviventes da tragédia. Ele perdeu vizinhos, amigos e a casa, mas conta, aliviado, que conseguiu salvar a mulher e a filha.

— Vim ajudar a achar pessoas. Quando tudo aconteceu, ouvi pedidos de socorro, aos gritos, mas não consegui sair de casa na hora por causa da lama. Precisei quebrar o portão de casa para sair e tirar minha esposa e minha filha daqui. Em seguida, voltei para tentar ajudar os vizinhos — conta.

O estrondo, "similar ao de um trovão", também aparece na descrição de dezenas de sobreviventes que conversaram com O GLOBO em meio aos trabalhos de resgate. Ao som, seguiu-se o desmoronamento.

O servente de pedreiro Alan Soares, de 20 anos, vive a angústia de procurar um familiar em meio aos escombros. Na segunda-feira, a força-tarefa encontrou o corpo de seu avô, Elias Pereira, que segundo ele agora está em uma unidade do Instituto Médico Legal (IML) improvisada no Hospital das Clínicas de São Sebastião.

Agora, Alan busca na lama o tio, Edigildo Soares de Souza, que morava com os avós. Segundo ele, só a avó e um outro tio conseguiram sair de casa a tempo. Durante o dia, trabalha nas buscas e à noite tem sido alojado na casa de uma patroa no bairro vizinho.

O corpo de Pereira, e os de ao menos outras 38 pessoas, seguiram para a ONG Instituto Verdescola, que fica no bairro, e se transformou em hospital e necrotério improvisados nas primeiras 36 horas após a tragédia. Por ali já passaram cerca de 1,4 mil pessoas afetadas pelas chuvas, informa Fernanda Carbonelli, advogada da ONG que coordena a ajuda humanitária no local.

A Escola Municipal Henrique Tavares também está recebendo vítimas dos deslizamentos. Uma delas é Suelen Jesus da Silva, de 24 anos. Nascida e criada no bairro, ela morava com o irmão, Ailton Leite, de 27 anos, e com a mãe.

Ailton deixou sua residência na madrugada de domingo para ajudar a limpar uma casa que estava inundando no bairro e até agora não voltou.

— Ele subiu o morro no domingo e mantive contato com ele, por telefone, até às 3h da manhã, quando disse que tentaria dormir. Ele estava com minha cunhada, Beatriz, que está grávida. Depois disso, veio o deslizamento e não mais falei com ele — afirma ela.

Suelen traz consigo fotos do casal, que mostrou a agentes da Defesa Civil.

— Eu queria pelo menos enterrar meu irmão e minha cunhada com dignidade - afirma.

Bairro de classe baixa, a Vila Sahy já inundou em episódios anteriores. A maioria das vítimas eram famílias que viviam em casas em uma encosta que desabou. Mesmo com a tragédia, há moradores de casas que ainda estão de pé, ainda que condenadas. Eles permanecem no local.

Na região mais afetada, parte significativa dos moradores é migrante de estados do Norte e do Nordeste. É o caso de Gabriel Costa da Silva, de 16 anos, que nasceu no Maranhão e deixou a escola para ser jardineiro em São Sebastião.

Morador do bairro, ele afirma que a chuva e o desmoronamento levaram a fachada do imóvel em que morava com os primos.

— Precisamos sair e ficamos na praia da Baleia abrigados na casa dos meus patrões, mas vim aqui pra ver a casa. Não tem mais condições de voltar aqui porque a fundação está frágil, mas tem gente no bairro que voltou pra dormir — disse.

Nicanor Alves, de 48 anos, mora a 15 metros da encosta, nos fundos do mini-mercado voltado aos públicos nordestino e nortista no bairro, o Cantinho do Norte, que fundou há oito anos.

— Perdi muito dinheiro pois freezers e geladeiras não funcionam mais. A lama chegou a meio metro, mas estamos limpando. Acredito que aqui não tem perigo por ser a base do morro — diz ele que, nesta terça, separou um balde de água para tomar banho.

Ao visitar a ONG Verdescola nesta terça-feira, o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) afirmou que o governo estadual tem planejado com as prefeituras maneiras de seretirar moradores de encostas.

— Vamos tentar transformar esse 'case' em um sucesso. Vamos pensar em uma solução de moradia que possa dar iniciar um trabalho de formiguinha. A ideia é desmobilizar de maneira perene as pessoas de encostas e drenar o poder público local para construir e fiscalizar bons planos diretores. A gente não pode comprimir as pessoas mais humildes nesses locais — afirmou.