Um dos primeiros romances escritos no Ocidente, 'Quéreas e Calírroe' ganha tradução
A obra “Quéreas e Calírroe” , de Cáriton de Afrodísias, “está entre os primeiros romances escritos no Ocidente, se é que assim podemos chamar o pedaço de mundo entre Europa e Ásia onde hoje fica a Turquia e antes estava a Cária”, lembra Adriane da Silva Duarte na apresentação da obra, cuja tradução e posfácio são também assinados por ela.
O romance data do século I d.C., e seu autor é praticamente desconhecido, assim como outros tantos autores de romances da Antiguidade, o que denotaria, segundo Duarte, “certo desprestígio do gênero entre a elite cultivada”.
O fato é que o romance como gênero literário estreia muito bem com Quéreas e Calírroe, “uma história de amor em Siracusa”, como diz seu autor, ou um relato narrado por ele “a respeito de Calírroe”, a protagonista dessas desventuras amorosas eletrizantes, que envolve o leitor da primeira à última linha.
Calírroe, que tem sua beleza comparada à de Afrodite, apaixona-se por Quéreas, comparado a heróis como Aquiles, Hipólito e Alcebíades. Embora haja uma rixa política entre suas famílias, o povo intercede pelo casal, e o casamento se consolida sob a bênção dos pais dos noivos, mas esse não é o final da narrativa, é apenas o começo de uma série de infortúnios, numa menção à deusa Fortuna, que interfere nos acontecimentos da história.
O destaque à personagem feminina teria relação com o público predominante desse gênero literário, as mulheres, e de alguma forma refletiria “uma mudança na sociedade, em que elas passam a ter maior visibilidade e acesso à educação, principalmente no contexto romano”, ainda que se tratasse de uma sociedade patriarcal, como lembra Duarte.
É exatamente essa sociedade patriarcal que vem à tona no romance. O destino de Calírroe fica à mercê das vontades e interesses de inúmeros homens: pai, marido, amante, rei etc. As únicas vozes femininas capazes de deter os homens são a de Afrodite e a de Fortuna.
Fios narrativos
O herói, Quéreas, depois de desposar a amada, passa a sofrer de crises de ciúmes e, em uma delas, ele desfere um golpe na esposa, que perde a respiração: “O pé acertou direto o diafragma e interrompeu a respiração da moça.”
O povo, acreditando que ela estivesse morta, a enterra viva. Quéreas, como muitos agressores, se arrepende e tenta pôr fim à própria vida, mas é impedido por um amigo. Mais tarde, vem a descobrir que a “amada” estava viva e que fora sequestrada de sua tumba por piratas. Ele parte, então, em busca de Calírroe, que vive em outro país.
Grávida de Quéreas, a heroína se torna esposa de Dionísio, homem rico, bom e protetor, que pensa ser o pai da criança que ela carrega no ventre. Cabe destacar que em momento algum Calírroe deixa de amar Quéreas, o qual, para os leitores do século XXI, está muito mais para um agressor do que para um amante merecedor de tanto afeto.
Como uma boa trama, cheia de fios narrativos, o romance chega ao seu ápice quando, depois de todas as vicissitudes sofridas pelas personagens, um terceiro homem, um rei, irá decidir com quem Calírroe deve ficar: se com seu benfeitor, Dionísio, ou com o primeiro marido, Quéreas.
O povo (e o leitor, diria) se divide entre os que torcem por Quéreas e os que torcem por Dionísio. Algumas mulheres lembram, contudo, o seguinte: “O que será se Quéreas tiver outro acesso de raiva? Outra vez a sepultura?”, ou “Quéreas, depois de desposá-la, matou-a. Calírroe deve lembrar da sepultura”.
Quéreas se defende alegando que “é certo que fui ciumento, sentimento típico de quem ama [...] Não guarde ressentimento pelo chute impiedoso”.
Parece-me que a história de Calírroe e Quéreas vem sendo narrada incessantemente desde o século I d.C. A mulher bela, disputada por vários homens, que falam por ela, e que só têm olhos para a sua beleza e pouco para o seu caráter, é, diria, ainda hoje um clássico na vida real.
Cáriton de Afrodísias diz que o excerto final de seu livro “eliminará as tristezas do primeiro”, pois “é a vez de amores justos e casamentos legítimos”. Não tenho certeza se as tristezas são eliminadas ao final e se os justos e valorosos são de fato os premiados; acredito que essa conclusão é do autor, mas não necessariamente será a do leitor.
“Quéreas e Calírroe” não é uma narrativa sangrenta como “Ilíada”, embora deva muito a ela, citando-a diretamente.
A tradução é embasada em edições do texto grego: a de Bryan Peter Reador, e a de G. P. Gold. Dessa costura nasceu uma narrativa fluente e acessível em língua portuguesa.
“Quéreas e Calírroe” | Autor: Cáriton de Afrodísias. Editora: 34. Tradução, apresentação e posfácio: Adriane da Silva Duarte. Páginas: 208. Preço: R$ 57.
Cotação: Ótimo
*Dirce Waltrick do Amarante é autora, entre outros, de “Cem encontros ilustrados” (Iluminuras)