Vivienne Westwood: O legado inconformista de quem fez da moda uma bandeira contra a caretice

A moda adora superlativos para definir seus estilistas, comumente tachados de Ă­cones pelo par de anos em que ocuparam o posto de designer do momento, de “dono” da Ășltima tendĂȘncia. HĂĄ, porĂ©m, nomes que nĂŁo cabem nos adjetivos porque seus legados nĂŁo se traduzem em roupas, mas na fundação de um estilo, aquele limite entre um antes e um depois de sua existĂȘncia. Vivienne Westwood foi dessas linhas visĂ­veis da HistĂłria.

O Ășltimo dia 29 de dezembro levou um rei, PelĂ©, e tambĂ©m a estilista inglesa, aos 81 anos, a quem a indĂșstria costuma resumir como “rainha do punk”. Seria um erro, porĂ©m, diminuir o tamanho dela ao inĂ­cio de sua trajetĂłria, quando construiu o visual do grupo seminal do punk rock, o Sex Pistols, gerenciado por seu entĂŁo marido, o empresĂĄrio Malcom McLaren. Assim que rasgou calças, aplicou tachas, detonou o visual corretinho dos 1960 e fez atĂ© lixo elemento de estilo, ela costurou a imagem da rebeldia do sĂ©culo XX, o inconformismo da juventude sem emprego, sem esperança e irritada com um Reino Unido imerso em crises.

Foi a partir dessa crise existencial britñnica que ela fundou os estratagemas da moda inglesa atual, reconhecida, muito por causa de suas ideias transgressoras, como centro de vanguarda da costura dita jovem. A colcha de retalhos começa por sua origem, muito antes de Naomi Campbell cair na passarela do inverno 1993 com o salto gigantesco que rodou o mundo — e foi copiado e reeditado com a mesma velocidade do flash. As memórias de sua infñncia partem do racionamento feroz de insumos no pós-guerra, que cimentou o entendimento da estilista sobre o reuso de materiais e a importñncia da contenção.

Reciclar, no caso dela, nĂŁo significava apenas materializar peças feitas de sobras, como uma de suas primeiras criaçÔes, a camiseta com ossos de galinha de 1971, que repousa no acervo do museu Victoria & Albert, em Londres. O que levou a juventude roqueira a bater ponto na loja Let It Rock, aberta naquele ano em parceria com McLaren e que mudou de nome diversas vezes atĂ© ganhar fama como Sex e, ainda aberta, exibe o nome World’s End, eram as araras que remetiam ao caos dos acordes e ao passado opressor que queriam enterrar. Westwood deu ao visual jovem um sentido de contestação resgatando espartilhos, anĂĄguas, tartĂŁs — o padrĂŁo xadrez que adorna os kilts escoceses e foi sĂ­mbolo de masculinidade da roupa de caça — e acessĂłrios incomuns tornados joias. De alfinetes a tachas de metal, as peças reinventaram o estilo britĂąnico.

“O grande varejo de moda incorporou Vivienne sem nem saber. As calças rasgadas, os spikes, as camisetas com mensagens, os alfinetes que depois Gianni Versace glamorizou nos vestidos, tudo passa por ela. Reforçava tradiçÔes ao mesmo tempo em que as quebrava”, explica a historiadora de moda Maria Claudia Bonadio. Mesmo uma das personagens que mais sofreu com as tesouras ĂĄcidas da estilista, a rainha Elizabeth II reconheceu a outra majestade de seu paĂ­s. A camiseta God Save The Queen, com a imagem da monarca estampada e um alfinete preso Ă  boca, nĂŁo a impediu de conceder Ă  designer a Ordem do ImpĂ©rio BritĂąnico, em 1992, quando Vivienne Westwood rodou a saia e mostrou que, mesmo tendo beijado a rainha minutos antes, preferiu ir sem calcinha Ă  condecoração.

Em 2006, ainda a concedeu o tĂ­tulo de “dama”. “Nenhum outro designer britĂąnico teve essa sutileza de ironia, ninguĂ©m conseguiu imprimir esse nĂ­vel de contestação, que discutia o ‘establishment’ em tudo o que produzia. Para mim, a HistĂłria da Moda no sĂ©culo XX Ă© Vivienne Westwood em Londres e Zuzu Angel no Brasil”, afirma o estilista mineiro Ronaldo Fraga. Ele recorda o tempo em que morava na capital inglesa, em 1994, e ganhou a seleção para uma vaga de estĂĄgio nĂŁo remunerado no ateliĂȘ da estilista. NĂŁo pĂŽde aceitar, porque precisava pagar o aluguel, mas soube do pĂ©riplo da colega alemĂŁ que topou o trabalho.

Ela ouviu dos assistentes que a chefe gostava de buscar referĂȘncias em revistas de moda e decidiu levar sua coleção. Quando viu os tĂ­tulos sobre a mesa, Fraga conta, teria perguntado de quem eram e ouvido “minhas” da estagiĂĄria. “NĂŁo sĂŁo mais”, rebateu Vivienne, antes de rasgar pĂĄgina por pĂĄgina. “Se vocĂȘ quiser criar algo, vĂĄ na literatura, porque isso Ă© um catĂĄlogo de vendas”, teria dito a estilista.

Tangenciar outras expressĂ”es artĂ­sticas para alĂ©m da mĂșsica fez mesmo parte de sua costura. A primeira coleção que desfilou, a Pirates, de 1981, misturava referĂȘncias aos dĂąndis, corsĂĄrios e filmes de piratas para criar o universo hipercolorido adornado por chapĂ©us “bicorne”, aqueles com duas pontas ao estilo NapoleĂŁo Bonaparte. Essa reedição histĂłrica constante com tintas de novidade tambĂ©m impulsionou a cultura de brechĂłs que ainda se perpetua em Londres, sede dos troca-trocas mais grifados do globo.

Vale lembrar, antes de poder comprar os prĂłprios tecidos, Westwood buscou as bases de sua criação em tudo o que iria para o lixo. Depois, customizou tudo, inaugurando o “do it yourself” de luxo que ainda dĂĄ as cartas nos guarda-roupas. Nos estudos da historiadora inglesa Elizabeth Wilson, ela aponta que o garimpo de peças antigas foi a versĂŁo britĂąnica da contracultura americana, portanto, o pontapĂ© do que, sabemos, jĂĄ Ă© uma realidade da indĂșstria. O estilista Marc Jacobs nĂŁo exagerou na homenagem que fez Ă  amiga estilista nas redes sociais, dizendo que “(ela) fez primeiro. Sempre”.

Mesmo Ă  sombra dos grandes desfiles da semana de moda de Paris nas Ășltimas dĂ©cadas, Westwood nĂŁo deixou de provocar com seus desfiles. Restritos ao prĂ©dio do Palais de Tokyo, onde ocorrem as apresentaçÔes de cunho mais independente, os shows se tornaram verdadeiros protestos por uma moda mais consciente e alfinetadas dolorosas no descartĂĄvel sistema atual. Suas ideias podiam atĂ© nĂŁo figurar nas Ășltimas listas de tendĂȘncias, mas sua aura seguia viva na cultura pop.

A Ășltima referĂȘncia ao seu reinado foi no live action “Cruella” (2021), da Disney, em que a personagem principal vivida por Emma Stone reproduz o visual da estilista e em vĂĄrias cenas se vĂȘ figurinos inspirados em seu legado. A cena com sacos de lixo, em uma espĂ©cie de desfile da personagem, parece homenagear a sĂ©rie de fotos que Westwood fez para criticar o descarte da indĂșstria da moda.

A importĂąncia dela foi ainda medida no blockbuster “Sex and the city” (2008), quando a fashionista mais cĂ©lebre da TV dos anos 2000, Carrie Bradshaw (Sarah JĂ©ssica Parker) elege no longa um vestido da estilista para seu casamento. “Ela deixa um rombo. É daquelas pessoas que achĂĄvamos poder ver vivas para sempre”, resume Ronaldo Fraga. “Bem, ela estarĂĄ.”