Vizinhos lamentam ‘vinda’ da Cracolândia para a praça no centro de SP: “Desastre”
Nos últimos três meses, Carla Moraes*, de 70 anos, não deixa o prédio onde mora, no centro de São Paulo, por medo.
“Minha irmã sofreu um enfarte faz 15 dias e não tive coragem de sair para visitá-la no hospital, fiquei presa aqui, já que nem Uber para mais por aqui e tenho trauma de caminhar até a Luz”, diz a administradora.
No celular ela exibe o motivo do medo: A aglomeração de usuários de drogas, moradores de rua, traficantes e vendedores de bebidas e cachimbos assusta a moradora do entorno da praça Princesa Isabel. “Depois das 19h ninguém sai mais, eles dominam as ruas e calçadas por aqui, a avenida inteira acaba assaltada”, alerta ela, que há 60 anos vive no centro da cidade, 20 deles no mesmo endereço.
Desde o dia 18 de março a praça Princesa Isabel é o ‘novo endereço’ da Cracolândia. O ‘fluxo’, como é chamado o mercado informal de drogas, cigarro, bebidas irregulares e todo tipo de artigo de algum valor deixou as imediações da estação Júlio Prestes espontaneamente naquele dia para se instalar na praça distante 400m dali.
“O pessoal que mora naquela região está muito feliz com a mudança, já a gente… é um desastre, nada pior poderia ter acontecido”, avalia Carla. Para as autoridades, a mudança foi promovida pelo próprio PCC (Primeiro Comando da Capital), que ‘gere’ o comércio no lugar.
Na avaliação de policiais civis, militares e GCM (Guarda Civil Metropolitana) o tráfico de drogas estava ficando estrangulado nas vias estreitas que abrigavam a Cracolândia até então. Por outro lado, as avenidas Rio Branco e Duque de Caxias, que margeiam a praça, além do terminal de ônibus Princesa Isabel, são vias de fuga muito melhores em caso de operações policiais.
Frequentadores relatam que eram cada vez mais frequentes as abordagens policiais que os encurralavam. Duas vezes por dia, agentes da GCM obrigavam o fluxo a se deslocar para permitir a limpeza das ruas pelos funcionários da prefeitura. Muitas vezes a movimentação terminava em conflito.
Vagões arrendados
Sob a sombra da gigantesca estátua do Duque de Caxias, tida como maior monumento equestre do mundo, barracas, estandes e balcões de venda estão montados e espalhados há pouco mais de um mês. Para instalá-los, traficantes e vendedores pagam um aluguel a membros do PCC. E o preço do espaço público não sai barato.
“Para cada barraca, os criminosos da organização cobram R$ 1.500 por semana; o balcão para prato onde vende-se a droga custa R$ 500”, explica Severino Vasconcelos, delegado à frente da Operação Caronte. Iniciada em Junho de 2021 pela Polícia Civil, a operação é apontada como motivadora da mudança de endereço do fluxo.
“Naquele momento começamos a identificar os principais vendedores e prendê-los fora da Cracolândia, onde havia mais segurança para as ações; essa pressão aumentou o preço da droga de R$ 40 para R$ 60 o grama, estava ficando inviável para eles”, afirma Vasconcelos, delegado há 30 anos, pouco mais de um comandando o 77º DP, responsável pela região.
Segundo a investigação comandada por Vasconcelos, a organização criminosa não trabalha diretamente com a venda de nenhum produto. Diz ele que tomaram controle da área entre as alamedas Nothmann, Cleveland, Helvétia e Dino Bueno e alugavam espaços para que os comerciantes vendessem suas mercadorias. Em troca, ofereciam “serviços” de proteção contra forças de segurança ou outra ameaça, resolução de conflitos e litígios (conhecido como tribunal do crime) e suporte logístico.
O delegado afirma que este nível de organização, hierarquia, divisão de tarefas e controle financeiro que foi identificado ao longo da operação, que está em sua quinta fase, permitiu a prisão de 93 pessoas por organização criminosa voltada ao tráfico. A tipificação mais rigorosa do que apenas o tráfico de drogas é o que teria mantido os 93 detidos ainda sob tutela das autoridades.
Levantamento feito pelo jornal Folha de S.Paulo revelou que 82% dos detidos já tinham passagem pelo crime de tráfico de drogas.
Medo e fuga
A mesma estrutura praticada na área da agora antiga Cracolândia foi mantida no novo endereço. Há cerca de três “vagões” compostos por dez barracas cada um onde são vendidas as drogas. Crack é a mais popular pelo baixo preço, mas outras drogas também são vendidas. Nos balcões montados fora encontram-se outros produtos que fazem parte do ritual do consumo da pedra: cachimbos, cigarros e o “Corote”.
Muito diferente da bebida homônima regularizada e popular entre os jovens, a garrafa em forma de barril vendida na Cracolândia é composta de etanol diluído, às vezes com aromatizantes. A produção caseira, feita em imóveis da região, ajudaria a manter o efeito do crack.
Com a presença de 6.000 pessoas aos finais de semana, o lucro dos vendedores da praça é garantido, mesmo com a cobrança das taxas. Comerciantes do entorno da Princesa Isabel, no entanto, reclamam da queda do faturamento. “As pessoas deixaram de passar pela rua para ir ao terminal, quem é que não teria medo de passar com a família”, comenta um comerciante que diz ter perdido 40% do faturamento no último mês.
Minutos antes uma mãe com o filho de aproximadamente oito anos questionava em um bar vizinho como pegar o ônibus para o Parque Edu Chaves sem ter de atravessar a região que a amedrontava.
Os antigos moradores da praça, visitados pela reportagem em fevereiro deste ano, foram forçados a abandoná-la com a chegada dos novos ocupantes, segundo guardas municipais que acompanham o movimento na região.
Camila Amaral*, dona de uma loja de autopeças na região, também relata a diminuição de 40% nas vendas. “Sábado passado mesmo ninguém vendeu nada porque houve uma confusão na praça envolvendo polícia ou GCM e eles subiram a avenida quebrando tudo; uma loja que não conseguiu fechar as portas a tempo acabou assaltada”, lamenta a empresária.
Além de trabalhar, ela mora na região, e diz não ver a hora de se mudar dali após assistir a dezenas de roubos, até mesmo de um gari. “Fecho a loja e vou correndo para casa para não chegar muito tarde; se saio sábado ou domingo eu nem volto para casa, porque com o comércio todo fechado, as ruas ficam vazias, tomadas só pelos usuários”, diz.
A região da Santa Ifigênia e Campos Elíseos na proximidade da Luz e da praça Princesa Isabel concentra o comércio de eletrônicos e motopeças da capital. Gente de toda a cidade vem por conta da variedade e preços praticados ali. No entanto, esse fluxo diminui, segundo Camila. Além disso, há anos o bairro fica deserto fora do horário comercial, das 14h de sábado até segunda-feira de manhã, o que aumenta a sensação de insegurança.
Camila e a vizinha Carla são pessimistas quanto ao futuro, e não acreditam que o problema da Cracolândia seja resolvido, do ponto de vista social, sanitário ou de segurança pública. Uma visão diferente do delegado Vasconcelos, que promete resolver ao menos a questão do tráfico, que lhe cabe, deixando para o sistema de saúde e as famílias – no seu entendimento – a resolução dos outros pontos problemáticos da Cracolândia.